Mais abastados tendem a morar em bairros separados da confusão da grande cidade enquanto os menos felizardos enfrentam condições pós-apocalípticas de poluição e superpopulação.
A reportagem é de Sergio C. Fanjul, publicada por El País, 12-01-2019.
Nas cidades as pessoas diferentes vivem em locais diferentes: se chama segregação urbana. A segregação pode ocorrer por diversos motivos, como a etnia e os estilos de vida, mas o fator mais importante é o econômico. Os que têm mais dinheiro podem escolher onde moram, para os mais pobres a escolha não é tão ampla. Os primeiros moram em bairros melhores, com melhores serviços, melhor construção e qualidade ambiental. Os pobres precisam se resignar a morar em bairros onde tudo é um pouco mais precário e até a expectativa de vida alguns anos menor. A influência da segregação residencial na trajetória vital das pessoas se chama “efeito bairro”, muitas vezes traduzido em fracasso escolar, desigualdade e falta de oportunidades.
Estudos e especialistas dizem que a segregação aumenta, em correlação às crescentes desigualdades provocadas pelo modelo econômico vigente, o que pode provocar problemas nas megacidades para as quais nos dirigimos. As Nações Unidas preveem que 68% da população morará em cidades em 2050, na Espanha 80% já estão nelas. As cidades são e serão os cenários dos conflitos sociais presentes e futuros.
“Os ricos e pobres estão morando em distâncias crescentes uns dos outros, e isso pode ser desastroso à estabilidade social e ao poder competitivo das cidades”, diz um estudo realizado durante a primeira década deste século por várias universidades europeias (Socio-Economic Segregation in European Capital Cities). Entre as causas estão a globalização, a reestruturação do mercado de trabalho, a diferença de renda, a decadência do Estado de bem-estar social e a mercantilização da moradia. A gentrificação e a turistificação são, além disso, processos que contribuem a essa separação entra as pessoas que, de acordo com suas condições vitais, deixam de conviver com outros grupos diferentes. Se o interessante das cidades era sua condição de caldo de pessoas e culturas, essa característica pode estar chegando ao seu fim.
A centrífuga urbana
As coisas nem sempre foram assim. Na segunda metade do século XIX, como lembra o sociólogo Richard Sennett em seu recente ensaio Construir e Habitar, os edifícios, por mais imponentes que fossem, podiam abrigar oficinas no térreo, depois andares nos quais morava a burguesia e os andares mais altos, que eram piores e menores, em que moravam trabalhadores humildes. Havia contato entre as classes sociais, a segregação ocorria no próprio edifício, nem tanto em escala urbana. Mas com a chegada dos transportes, como o bonde, já não era preciso que as classes populares morassem junto com as mais abastadas. A produção industrial as levou à periferia: “A cidade operava como uma centrífuga que separava especialmente as classes”, escreve Sennett. O elevador (físico, não social) permitiu que os ricos morassem em andares altos sem a necessidade de subir escadas. E agora estão na moda as coberturas de luxo, coisa à época impensável.
Por que a segregação urbana não é desejável? Além das razões relacionadas com a justiça social, existem outras: “A segregação é prejudicial do ponto de vista da inovação, as cidades muito segregadas expulsam os trabalhadores que não podem viver nelas e têm dificuldades para crescer no futuro”, diz Esteban Moro, pesquisador da Universidade Carlos III de Madri e do MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts). A aglomeração da diversidade humana nas primeiras cidades, há 7.500 anos, afirma o ensaísta científico Steven Johnson em seu livro De Onde Vêm as Boas Ideias, foi o que acelerou o processo de inovação com invenções simultâneas como o alfabeto, a moeda, a pavimentação, a roda e a navegação. “Além disso, a segregação impede que algumas pessoas vejam os problemas das outras, e assim é difícil que se peça uma redistribuição da riqueza. As pessoas de rendas mais altas podem chegar a se opor às políticas sociais”, acrescenta Moro.
De fato, o contato traz o carinho e a segregação o anula. De acordo com as pesquisas em neurociência social de Lasana Harris, da Universidade de Duke, e Susan Fiske, de Princeton, (citadas pela jornalista Marta Peirano em seu recente livro O Inimigo Conhece o Sistema), quando não temos contato com outros grupos perdemos a capacidade de empatizar com eles, e até se desativam as áreas cerebrais que se ocupam da compreensão e da identificação. Desumanizamos os diferentes e os preconceitos aparecem.
É verdade que o bairro em que moramos é importante, mas também é verdade que passamos até 80% de nosso tempo fora de casa, de modo que, como Moro descobriu analisando dados obtidos de celulares através de técnicas de big data, os lugares que frequentamos durante o dia também são importantes. É o que demonstra o projeto Atlas da Desigualdade que o pesquisador desenvolve no MIT MediaLab, em que analisa outros fatores da segregação além do local de residência em algumas cidades dos Estados Unidos. Por exemplo, a segregação também ocorre em lojas e restaurantes, em bares, em cabeleireiros, em shoppings, os “terceiros lugares” (cada vez mais relacionados com o consumo, e em decadência em relação às relações digitais) que não são o domicílio e o trabalho. Os ricos e os pobres não frequentam os mesmos.
Distopias segregadas
Os ricos partiram e agora vivem em um satélite artificial, longe da superfície terrestre em que os menos felizardos enfrentam condições pós-apocalípticas de poluição e superpopulação. No satélite dos abastados, por outro lado, a água é abundante, o ar está limpo e se vive com todas as comodidades. Isso ainda não passou à realidade, mas é o enredo do filme de ficção científica Elysium (Neill Blomkamp, 2013) que se passa no ano de 2154. Um retrato da segregação levado ao extremo.
Mas, ainda que pareça extremo, um fenômeno não muito diferente está acontecendo sobre a superfície do planeta. As chamadas gated communities aumentam, principalmente nos países mais desiguais: bairros fechados em que os privilegiados moram cercados de muros, câmeras de vigilância e aproveitando seus próprios serviços. Outro filme retrata uma dessa comunidades, Zona do Crime (Rodrigo Plá, 2007). E indo ainda mais além, onde a realidade iguala a ficção: o movimento seasteading, apoiado por papas do Vale do Silício como Peter Thiel, cofundador do PayPal, pretende criar utopias anarcocapitalistas para ricos em ilhas artificiais (e paraísos fiscais) nas águas do Taiti, não sem escândalo, como denuncia o documentário The Seasteaders, de Jacob Hurwitz-Goodman e Daniel Keller.
Na Espanha, Madri e Barcelona também são amostras de segregação. Em Madri a segregação ocorre notoriamente no eixo norte-sul: na parte noroeste, salvo exceções, estão as rendas mais altas; os tradicionais bairros operários (Vallecas, Usera, Carabanchel etc.) estão abaixo do rio Manzanares, no sudeste. “Na parte norte está o privilégio, no sul a vulnerabilidade”, diz o sociólogo Daniel Sorando, da Universidade Complutense de Madri, participante do estudo pan-europeu citado. De acordo com a pesquisa, Madri é a capital mais segregada da Europa e a segunda em desigualdade social. Em Barcelona, segundo aponta o urbanista Oriol Nel·lo, do departamento de Geografia da Universidade Autônoma de Barcelona, a segregação ultrapassa as divisas da capital catalã e ocorre entre diferentes municípios: Sant Cugat del Vallès não é a mesma coisa do que que Sant Adrià de Besòs.
Nesse tipo de capitais a força que separa as classes sociais é maior, pela constante chegada de visitantes e trabalhadores, muitos deles altamente qualificados, à procura de oportunidades em grandes empresas. A socióloga Saskia Sassen (prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais 2013) batizou esses nodos mundiais de capital e informação de “cidades globais” e, ainda que muitos lugares queiram se transformar em globais, isso não necessariamente beneficiará a maioria de seus habitantes.
O direito à cidade
A Nova Agenda Urbana das Nações Unidas, nascida de sua reunião sobre a Moradia e o Desenvolvimento Sustentável Hábitat III, de 2016 (realizada a cada 20 anos), aponta a segregação como um dos grandes desafios das cidades. E pela primeira vez coloca o direito à cidade, um conceito criado pelo filósofo Henri Lefebvre e reivindicado posteriormente pelo geógrafo David Harvey e diferentes movimentos sociais do século XXI.
“As injustiças sociais se refletem em questões espaciais: a segregação, a gentrificação, a especulação se manifestam no modo em que as pessoas vivem”, diz Antonio Campillo, professor da Universidade de Murcia e autor do recente ensaio Um Lugar no Mundo, Justiça Espacial e Direito à Cidade. A precarização tem um componente fundamental, de acordo com o professor, na falta de posse dos meios de vida mais básicos, como a moradia. “O direito à cidade fala de todas as dimensões que permitem levar uma vida digna”, diz o autor; “uma das coisas reivindicadas é a ordenação urbana com critérios de justiça social e ambiental, e a promoção de políticas participativas para que a população seja atora na vida da cidade: a cidade é de todos e é preciso fazê-la entre todos”.
O que mais pode ser feito para aliviar a segregação? “São necessárias políticas que não podem ser só locais, e sim supralocais e de caráter transversal”, diz Nel·lo, “não somente melhorar o espaço público e a acessibilidade, e sim todos os âmbitos da vida da população”. Entre as soluções apresentadas está o investimento em educação, transporte público, mobilidade social e urbanismo, regulamentar o mercado da moradia em áreas tensionadas com preços de aluguel desorbitados, aumentar a moradia social e, principalmente, misturá-la na cidade sem criar guetos. Nesse sentido, a Prefeitura de Barcelona aprovou em 2018 um plano em que qualquer nova promoção imobiliária é obrigada a incluir 30% de moradias acessíveis (as políticas de moradia da Prefeitura receberam em junho o prêmio European Responsible Housing Award). Desse modo, pessoas de diferentes estratos compartilharão escadas e empatizarão.
Fonte: IHU
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